Presos em sua “bolha opaca”, governantes negligenciaram as previsões sobre a tragédia no RS. Entrevista especial com Heverton Lacerda

Por: IHU e Baleia Comunicação

A situação dramática que vivemos no Rio Grande do Sul foi amplamente negligenciada em todas as esferas dos governos, conforme explica o ambientalista Heverton Lacerda. “Está evidente que sim, tanto o Estado quanto as administrações dos municípios atingidos não trataram do assunto com a seriedade que as comunidades merecem e que a situação exige, subestimando o conhecimento científico e os alertas climáticos (mais amplos que os meteorológicos)”, pontua o pesquisador. Para ele, “há um despreparo muito grande de nossos governantes do Estado e dos municípios. Eles estão perdidos e não sabem como agir. Estão aprisionados em uma bolha opaca, pressionados pelo modelo socioeconômico vigente e mau assessorados para compreender a realidade climática que se impõe”, sinaliza.

Não é de hoje que os cientistas e ambientalistas soam o alarme da mudança climática. “Em 1974, José Lutzemberger já alertava que, em suas palavras, ‘à medida que progride a desnudação das montanhas, das cabeceiras e margens dos rios, à medida que desaparecem os últimos banhados, outros grandes moderadores do ciclo hídrico, a paisagem mais e mais se aproxima da situação de deserto, os rios se tornam mais barrentos e mais irregulares. Onde havia um fluxo regular, alternam-se então estiagens e inundações catastróficas’”, relembra Lacerda, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Heverton Lacerda também explica que a degradação de áreas, que deveriam ser de proteção ambiental, agrava os danos das enchentes. “As planícies de inundações dos rios estão desmatadas e urbanizadas. As matas ciliares, que desempenham importantes funções junto aos cursos d’água, protegendo-os, foram dizimadas ao longo das últimas décadas. Prédios, casas e lavouras tomaram seus lugares, além de se instalarem em encostas de morros” assinala o pesquisador. Desse modo, “rios mais rasos, assoreados pela terra pobre e sem matas ciliares, não conseguem deter, em seus cursos e margens, volumes um pouco mais expressivos de água da chuva. Com isso, as águas se alastram ainda mais”, complementa.

Lacerda ainda destaca que, ancorado na promessa de um “desenvolvimento”, o Rio Grande do Sul segue preso a uma “concentração de riqueza econômica e destruição ambiental, em uma lógica de privatização de lucros e socialização de danos. Isso tem origem na correlação de forças que conduzem as políticas públicas do Estado, por hora a favor de interesses econômicos de pequenos grupos economicamente empoderados”, expõe.

Além de ações imediatas para mitigar os efeitos da crise climática, devemos eliminar a queima de combustíveis fósseis, propõe o jornalista, pois, segundo ele “o que está acontecendo no Rio Grande do Sul pode ser apenas o começo de uma situação que tende a aumentar muito. Isso pode parecer alarmista para alguns, mas o que acontece hoje já era previsível, e isso está fartamente documentado. É preciso agir com responsabilidade ecológica e precaução ambiental”, sinaliza.

Heverton Lacerda é ambientalista, jornalista, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental/UFRGS, especialista em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia e mestrando em Comunicação na mesma instituição. É membro da coordenação do Comitê de Combate à Megamineração no RS, representando a Agapan, fundador e ex-presidente do Instituto de Comunicação Social e Cidadania – InComun, instrutor em projetos sociais populares e presidente da Agapan na segunda gestão consecutiva.

Confira entrevista.
IHU – O Rio Grande do Sul passa por sua maior catástrofe ambiental. O que isso significa?

Heverton Lacerda – Estamos vivenciando alguns efeitos iniciais da crise climática, que é diferente de evento climático. A atual catástrofe está inserida em um contexto mais amplo. A crise do clima precisa ser analisada com base em longos períodos de tempo, décadas ou séculos. Ela já vem se desenvolvendo há bastante tempo. Os eventos são sintomas pontuais.

Não tenho a pretensão de dar uma resposta completa para o significado do que está acontecendo aqui, ainda muito recente e complexo, mas posso contribuir com alguns elementos para reflexão e para ajudar nas tomadas de decisões que se desejem responsáveis diante da crise climática (não apenas diante da catástrofe).

O que está acontecendo no Rio Grande do Sul pode ser apenas o começo de uma situação que tende a aumentar muito. Isso pode parecer alarmista para alguns, mas o que acontece hoje já era previsível, e isso está fartamente documentado. É preciso agir com responsabilidade ecológica e precaução ambiental.

Algumas regiões, como é o caso da nossa, não exclusivamente, já estão sofrendo algumas consequências dos eventos extremos anunciados há várias décadas. São diversos fatores que podem exercer influências concomitantemente, mas a ação humana, com suas interferências destruidoras no meio ambiente e emissões de gases poluentes na atmosfera, tem contribuído, de forma definitiva, para este cenário climático.

Em 1974, José Lutzemberger já alertava que, em suas palavras, “à medida que progride a desnudação das montanhas, das cabeceiras e margens dos rios, à medida que desaparecem os últimos banhados, outros grandes moderadores do ciclo hídrico, a paisagem mais e mais se aproxima da situação de deserto, os rios se tornam mais barrentos e mais irregulares. Onde havia um fluxo regular, alternam-se então estiagens e inundações catastróficas”.

É importante ressaltar que a Agapan foi criada em 1971 porque os problemas ecológicos já estavam evidentes, e esses influenciam no equilíbrio planetário, fundamental à existência da vida como a conhecemos aqui. Em 1972, foi realizada a Conferência de Estocolmo, que tinha o objetivo de discutir os problemas ambientais. Nos anos seguintes, muitos fóruns climáticos, com participações de ambientalistas, cientistas e governantes, aconteceram ao redor do mundo. Ou seja, são mais de 50 anos de alertas, sem contar as atuações sistemáticas das ONGs ambientalistas em conselhos ambientais e de saúde no âmbito do Brasil, em especial aqui no Rio Grande do Sul. A Agapan já participou em todas as esferas, desde o início.

Vou trazer aqui, neste momento, apenas um exemplo de problema. No RS, temos um Conselho Estadual de Meio Ambiente, que ajudamos a criar, conhecido pela sigla de Consema. Atualmente, o Consema está desconfigurado de sua função de proteção ambiental por atuação de consecutivos governos submetidos a interesses do setor econômico. Isso tem influência significativa na fragilidade ecológica (e fiscal) que o nosso estado se encontra hoje. O Conselho deveria se orientar pela proteção do ambiente natural, mas não é o que acontece.

Nos mesmos moldes que a Secretaria de Meio Ambiente, o Consema tem se posicionado como balcão de negócios para facilitar interesses privados de atividades que degradam o meio ambiente. Ao próprio nome tradicional da Secretaria, foi acrescentada a denominação de “Infraestrutura”, que evidencia as intenções de enfraquecer o órgão ambiental, dando a ele um caráter burocrático para justificar atenção a outra área de governo. Esse mesmo Conselho, com votos contrários das entidades ambientalistas, que são minoria atualmente, ressalte-se, aprova projetos que colocam o meio ambiente em risco. Isso está diretamente relacionado com o que estamos sofrendo hoje.

IHU – O volume de chuvas acumulado foi muito superior à média histórica para o período. O que existe hoje de tecnologias capazes de fazer levantamentos sobre eventos extremos tal como o que estamos vivenciando?

Heverton Lacerda – Faço questão de iniciar esta resposta de forma repetitiva para marcar bem o que é importante observarmos. Estando inseridos em um contexto de crise climática amplamente anunciada. Neste sentido, os estudos divulgados, por exemplo, através dos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, ou Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) se configuram como uma ferramenta de gestão de grande importância, em nível mundial. Os governos brasileiros, de todas as esferas, têm conhecimento sobre esses estudos, ou ao menos deveriam ter.

Além disso, o relatório “Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima”, de 2015, já indicava possibilidades de situações dramáticas. O resumo executivo desse relatório apresentava modelos climáticos com projeções de clima futuro. O documento síntese aponta indicações de medidas de adaptação e informa que “o impacto das mudanças climáticas sobre as vazões indica uma tendência de aumento na região Sul do país, ao passo que nas regiões Norte e Nordeste verifica-se uma redução nessa variável”. Portanto, o aumento de frequência de cheias e inundações na região Sul já estava previsto em estudos encomendados pelo governo. Não justifica, em nenhum âmbito governamental (nacional, estadual e municipal), que governantes, que se candidataram para governar, não tenham se apropriado desse relatório, que foi pago com recursos públicos. O estudo ainda é claro ao indicar que “as informações apresentadas evidenciam riscos que demandam ações preventivas”.

Além disso, cabe destacar que os sistemas de monitoramento climático estão mais sofisticados e muitos profissionais de meteorologia estão alertando para os eventos climáticos mais imediatos. Em tempos de satélites ultrassofisticados, internet rápida e equipamentos de alta tecnologia, nada que não seja o negacionismo climático justifica a inação. Não posso acreditar que nossos governantes desejem, conscientemente, o sofrimento pelo qual nosso povo está passando. Se realmente não querem ser responsáveis por esta situação toda, devem parar de propor e aprovar projetos antiecológicos sob pressão do setor econômico.

IHU – Sabia-se, após as inundações nas Bacias do Taquari, Caí e outras que esse volume de água chegaria até o Guaíba. A situação foi subjugada (subdimensionada) pelo Estado, que não criou um plano de evacuação antecipado das áreas de risco?

Heverton Lacerda – Está evidente que sim, tanto o Estado quanto as administrações dos municípios atingidos não trataram do assunto com a seriedade que as comunidades merecem e que a situação exige, subestimando o conhecimento científico e os alertas climáticos (mais amplos que os meteorológicos). Há um despreparo muito grande de nossos governantes do Estado e dos municípios. Eles estão perdidos e não sabem como agir. Estão aprisionados em uma bolha opaca, pressionados pelo modelo socioeconômico vigente e mau assessorados para compreender a realidade climática que se impõe.

As planícies de inundações dos rios estão desmatadas e urbanizadas. As matas ciliares, que desempenham importantes funções junto aos cursos d’água, protegendo-os, foram dizimadas ao longo das últimas décadas. Prédios, casas e lavouras tomaram seus lugares, além de se instalarem em encostas de morros. Isso não é só no Rio Grande do Sul. Santa Catarina, aqui ao lado, por exemplo, também está nessa situação.

Cabe ressaltar, que esse modelo de desenvolvimento não iniciou nas atuais gestões governamentais, ele já vem de muitos anos, seguindo a lógica de um sistema capitalista desinteressado com a pauta socioecológica. Mas isso não é novidade para a classe política.

Sabendo disso, os atuais governos, deixando de agir da forma correta, preventiva, no tempo adequado, demonstram total despreparo para governar, além de omissão e falta de responsabilidade social.

IHU – Há pouco tempo conversamos sobre os impactos do então projeto de Lei do Deputado Coronel Zucco que prevê a construção de barragens nas APPs. Agora, o PL tornou-se a Lei 16.111/24, após sanção de Eduardo Leite. O que isto demonstra sobre a compreensão dos parlamentares gaúchos em relação à questão ambiental?

Heverton Lacerda – É uma lei antiecológica e climaticamente irresponsável, sem falar que afronta diretamente o Artigo 225 da Constituição Federal (CF), que indica que “todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, ressaltando que o meio ambiente é “bem de uso comum do povo essencial à sadia qualidade de vida”.

Ao permitir a destruição do ambiente natural das Áreas de Preservação Permanente (APPs), a lei estadual interfere no equilíbrio ecológico ao qual a CF se refere. Além de serem fundamentais para a biodiversidade, as APPs, com seus ecossistemas hídricos, ajudam a regular os regimes de chuvas e os microclimas locais e, no conjunto de APPs, os regionais.

A finalidade de uso também é distorcida quando o legislador estadual coloca o bem de uso comum a serviço de interesses privados, mesmo que para isso busque confundir os cidadãos dizendo que é para fins de utilidade pública. Na prática, a lei converte área de preservação em área de produção, enfraquecendo o sistema de preservação ambiental.

Tendo em vista que o setor de produção agrícola, em especial no modelo de agronegócio, é um dos maiores responsáveis pelas emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) no Brasil, essa conversão, além de diminuir áreas que ajudam a neutralizar o volume de CO² equivalente na atmosfera, às coloca em soma às demais áreas emissoras de GEE. Ou seja, além de antiecológica, a lei contribui para o aumento da crise climática.

As APPs não se recompõem mais em sua originalidade. Isso demonstra exatamente o que colocamos na resposta acima, só que desta vez apontando para a classe parlamentar gaúcha, em boa parte à serviço dos interesses privados do agronegócio, que produz de forma ecologicamente insustentável, destrutiva.

IHU – A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou o PL 364/2019, que elimina a proteção ambiental da vegetação nativa nas chamadas “áreas não florestais” em todo o país. O projeto de autoria do deputado Alceu Moreira (MDB-RS) e relatado por Lucas Redecker (PSDB-RS) expõe campos nativos em todos os biomas brasileiros à conversão para expansão agrícola. Cerca de 48 milhões de hectares – território do Paraná e RS juntos – ficarão sujeitos a desmatamento. De que forma a aprovação de um projeto dessa magnitude contribui para desastres como esse que estamos vivendo no Rio Grande do Sul?

Heverton Lacerda – É importante dizer que esse é mais um projeto que atende a interesses privados do agronegócio, que não tem o objetivo principal de alimentar a população, como pregam. Os interesses são primeiramente de lucro, dentro de um modelo agrícola capitalista dependente de políticas públicas, altamente refém de tecnologias artificiais importadas, como venenos agrícolas que não são aceitos nos próprios países onde são fabricados e transgenia.

O agronegócio, com suas toneladas de venenos, tem avançado sobre áreas naturais, fragilizando-as ecologicamente através de mudanças no uso da terra e da água. Ao eliminar vegetação nativa, sejam florestas com grandes árvores ou campos nativos, com suas gramíneas de rica biodiversidade, subverte a função ecológica, destrói os ecossistemas naturais e esteriliza um meio que depende da vida microbiológica para ser completo.

A terra viva, mineral e vegetal, perde, então, suas características dentro do sistema de vida equilibrado ao longo do tempo. Sem vegetação, com suas folhas, ramos e raízes, e sem a microfauna, resta um solo empobrecido e fraco, transformado pela ação humana deletéria.

Essa terra fraca, sem viço, nua ao tempo, não resiste a qualquer chuvisqueiro e, com isso, logo escorrega para rios e lagos. Rios mais rasos, assoreados pela terra pobre e sem matas ciliares, não conseguem deter, em seus cursos e margens, volumes um pouco mais expressivos de água da chuva. Com isso, as águas se alastram ainda mais.

IHU – Como a alteração de APPs e APAs afetam os recursos hídricos? De que forma impactam na proteção das cidades em momento de cheias?

Heverton Lacerda – As Áreas de Preservação Permanente (APP) são espaços protegidos pela legislação ambiental brasileira devido à sua importância para a conservação dos recursos naturais, como rios, lagos, nascentes, topos de morro, encostas, restingas, manguezais, entre outros. Essas áreas têm funções ambientais específicas, como a proteção do solo, a manutenção da biodiversidade, a garantia da qualidade da água, a estabilidade geológica, a segurança das populações humanas, entre outras.

Já as Áreas de Proteção Ambiental (APA) são unidades de conservação de uso sustentável, ou seja, locais onde atividades humanas são permitidas desde que sejam realizadas de maneira sustentável, de modo a conciliar a preservação ambiental com o uso dos recursos naturais. As APAs são espaços destinados à conservação da biodiversidade, à proteção dos recursos hídricos, à promoção do turismo ecológico, entre outras finalidades, e sua criação é regulamentada pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).

Não é à toa que sociedade identificou a necessidade de criar essas áreas. Com as mudanças na dinâmica social brasileira, que compreende seus meios e formas de produção, inclusive, poucas áreas naturais restariam se não tivessem legalmente protegidas, embora, como vimos, também não faltem propostas de leis que queiram mudar isso.

O objetivo é garantir a manutenção de áreas naturais, ao menos uma parte delas. Como eu disse na resposta anterior, o equilíbrio natural, atingido por milhares de anos de evolução, é essencial para manter a natureza estável e tornar possível o nosso convívio aqui, lembrando que somos partes da natureza. Sendo parte, ao destruir um órgão do sistema complexo de vida, estamos, ao mesmo tempo, nos destruindo. Tudo está interligado. É preciso ter essa consciência ecológica de vida interdependente.

As cidades, construídas por nós em ambientes naturais, passam a fazer parte dessa nova situação modificada. Precisamos nos dar conta de que há várias formas de construir cidades, entre elas as cidades inteligentes, ecologicamente sustentáveis, e as cidades invasoras, que não são pensadas para se conectarem à natureza e exercem papel de cancro, verdadeiros tumores formados pela multiplicação desordenada. Esses são conceitos meus, a modo de exemplificar aqui, não quero me indispor com estudiosos do urbanismo, a quem tenho grande respeito.

Ao interferir em APPs e APAs, todas elas dentro dos limites das cidades, seja na área rural ou urbana, destituindo-as de suas funções, estamos contribuindo para desproteger as cidades em momentos de cheias, secas e alterações extremas de temperatura, o que, na sequência, interfere na questão climática.

IHU – Qual a importância da preservação dos biomas Pampa e Mata Atlântica para o Rio Grande do Sul?

Heverton Lacerda – São os dois biomas que afloram aqui. Ambos exercem seus papeis e têm suas importâncias fundamentais para as vidas que se instalam neles e para o equilíbrio climático. Além das funções ecológicas, temos a questão das relações de afeto e culturais. O Pampa faz parte, inclusive, do espírito do gaúcho tradicional. Infelizmente, tem sido degradado pela chegada e avanço de monoculturas destinadas à exportação.

Ambos os biomas abrigam uma grande diversidade de espécies de plantas, animais e microorganismos. Essa biodiversidade é crucial para a manutenção dos ecossistemas saudáveis e resilientes.

Juntos, Pampa e Mata Atlântica desempenham por aqui um papel fundamental na regulação do ciclo da água, ajudando a manter a qualidade e a quantidade dos recursos hídricos disponíveis, como rios e aquíferos. Esses biomas fornecem uma série de serviços ecossistêmicos essenciais para as comunidades locais, incluindo a regulação do clima, polinização de culturas, purificação do ar e da água.

Tanto o Pampa, quanto a Mata Atlântica são partes integrantes da identidade cultural e histórica do Rio Grande do Sul. Eles desempenham um papel significativo na forma como as pessoas se relacionam com o ambiente natural e influenciam as práticas culturais e tradicionais da região.

A preservação desses biomas é essencial para garantir a sustentabilidade ambiental, permitir atividades econômicas ecologicamente sustentáveis e preservar a cultura tradicional do Rio Grande do Sul.

IHU – Que tipos de ações devem ser implementadas para a mitigação das mudanças climáticas no RS e no Brasil?

Heverton Lacerda – Precisamos de ações, inicialmente, para reduzir ou encerrar as atividades que causam as mudanças climáticas. Isso parece drástico. Mas só assim teremos alguma chance de reverter o atual cenário. Um exemplo do que precisa ser encerrado imediatamente são as atividades que utilizam queima de combustível fóssil. Veja, não estou dizendo que isso é fácil, mas já existe uma certa compreensão mundial de que é necessário e urgente. A velocidade que isso vai acontecer está diretamente ligada ao tempo de início de uma possível reversão no avanço da crise. Temos que parar logo as emissões. Já estamos perdendo vidas.

A transição para um modelo energético limpo também é necessária, mas não há consenso ainda de como fazer. Nós, ambientalistas, queremos a transição energética, mas isso tem que ser ecologicamente planejado. Neste sentido, não pode impactar negativamente as comunidades tradicionais, como pescadores, por exemplo, que estão lutando na região da Lagoa dos Patos para não perderem seus espaços de sustento e cultura.

Além de proteger, é preciso reflorestar encostas e topos de morros, margens de rios e lagos, criar corredores ecológicos, repensar nossas cidades e modelos de produção. O poder público precisa estar mais conectado com órgãos e entidades que têm proficiência nessa questão, como ONGs ambientalistas e universidades, ao contrário do que faz hoje, com relações apenas com empresas com fins lucrativos.

Também é preciso fortalecer os órgãos ambientais e recompor a legislação de meio ambiente, cancelando, inclusive, leis como essas duas citadas nesta entrevista. Além disso, entre tantas outras coisas, é preciso regulamentar zoneamentos ecológico-econômicos e implementar a reforma agrária com foco na produção agroecológica.

IHU – Pesquisas realizadas na UFRGS dão conta que o RS estará no epicentro dos eventos extremos de precipitações severas. O que podemos esperar? Há como mitigar esses efeitos ou adaptar nossas cidades, uma vez que há um grande adensamento populacional nas proximidades dos rios?

Heverton Lacerda – Essa é uma situação extremamente preocupante. Segundo o jornal O Globo, o Rio Grande do Sul teve 2.758 casos de decretação de situação de emergência e de estado de calamidade pública na última década. Ficamos na primeira posição, à frente da Bahia, a segunda colocada, com 2.381 casos. Não é uma façanha da qual se possa vangloriar. Ao contrário, esses dados, somados às informações apresentadas pela UFRGS, dão conta de que o governo não pode mais ficar parado. É preciso agir logo. É melhor planejar e agir com precaução do que tentar, sem lograr êxito, remediar, como o governo gaúcho tem feito.

Mitigar é algo necessário porque não conseguimos, antes, evitar de chegar até aqui. Não foi por falta de tentativa e alerta dos ecologistas.

Sim, há como mitigar, mas precisamos agir logo. O Estado sabe, e já sabia antes das catástrofes, registre-se novamente, quais são as áreas de risco, onde estão as comunidades mais expostas às intempéries, quais são as fragilidades territoriais que precisam de recuperação ambiental e sabe também que estamos em um cenário de crise climática, embora tente fazer de conta que não sabe.

Agora, no meio do furacão, com menos tempo para agir, será necessário ter mais agilidade e boa vontade política, além de cooperação das comunidades. Algumas pessoas já estão dizendo que não voltam mais para cidades atingidas mais de uma vez; um prefeito já está sugerindo mudar cidade de lugar. Vamos acompanhar para ver como o governo estadual e os municípios vão reagir, se tomarão atitudes sérias ou novamente darão de ombros e seguirão com políticas antiecológicas. Vidas precisam ser salvas e o meio ambiente precisa ser preservado, no que ainda resta, e recuperado, em tudo o que for possível.

IHU – Quais seriam as políticas de preservação ambiental de curto, médio e longo prazo que podem ser adotadas?

Heverton Lacerda – As palavras-chaves, resumidamente, seriam preservar e recuperar. Preservar todas as áreas naturais ainda existentes e recuperar o máximo possível das que já foram impactadas. Tudo isso de maneira célere e planejada com foco nos valores ecológicos.

É necessário compreender que florestas e vegetação urbana nativas são essenciais para a qualidade de vida e equilíbrio ambiental. Nas cidades, precisamos manter e valorizar a arborização urbana, ao contrário do que têm feito os últimos dois prefeitos de Porto Alegre, com políticas comerciais arboricidas, indo no sentido contrário do que é necessário.

Em nível estadual, proteger os biomas e recuperar as áreas degradadas, começando, diante da urgência, com as matas ciliares e de encostas de morros. Com assessoramento técnico adequado, estudar possibilidades de, por exemplo, aproveitar áreas alagadas para plantio de vegetações nativas de cada região, podendo-se utilizar, inclusive, a técnica de bombardeio aéreo de sementes. Ou seja, existem muitas alternativas técnicas que podem ser utilizadas, desde que Estado e municípios tenham interesse. Estamos, enquanto Agapan, sempre dispostos a colaborar.

IHU – A ocorrência de eventos climáticos extremos é o novo normal?

Heverton Lacerda – Conforme os prognósticos climáticos, se não fizermos a nossa parte, reduzindo as emissões de GEE até alcançar níveis pré-industriais, é possível que sim, que esse seja um novo normal. Até quando, não se sabe.

Particularmente, minha percepção é que dificilmente iremos reduzir a tempo de evitar o colapso, pois boa parte da sociedade está desinformada ou incrédula sobre a situação. Há muita disputa narrativa sobre a crise climática, e isso envolve muitos interesses políticos e econômicos, que estão diretamente interligados.

Vivemos em um tempo de muita comunicação, mas também de muita desinformação. Algumas coisas mudaram no mundo nesse sentido, com o surgimento de novas tecnologias, mas outras, como o domínio concentrado dos meios de produção capitalista, continuam parecidas com as de alguns séculos atrás. Surgiram também, por um lado, as notícias falsas amplamente disseminadas por multidões em redes digitais e, de outro, redes digitais inteiras nas mãos de magnatas globais. Essa questão interfere no processo de conscientização ecológica e educação ambiental, mas nem sempre de forma positiva.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Heverton Lacerda – Um pedido aos leitores, que são eleitores: que reflitam sobre isso, com a seriedade que a pauta merece e sem radicalismos partidários. Que votem com consciência ecológica e cobrem de seus candidatos, eleitos ou não, atuações ecologicamente sustentáveis. Não me refiro aqui à sustentabilidade marqueteira, aquela ilustrada com figuras verdinhas e de aparências sérias. Não basta um discurso aparentemente responsável, se, quando eleitos, políticos propõem e votam em projetos antiecológicos. O que aparece em propagandas nem sempre representa o conteúdo da embalagem. A propósito, menos embalagens ajuda.

No Rio Grande do Sul, a população tem sido iludida, há muitos anos, com promessas de um certo “desenvolvimento”. Mas, na prática, o que temos é concentração de riqueza econômica e destruição ambiental, em uma lógica de privatização de lucros e socialização de danos. Isso tem origem na correlação de forças que conduzem as políticas públicas do Estado, por hora a favor de interesses econômicos de pequenos grupos economicamente empoderados.

É preciso incentivar a agroecologia, que produz alimentos saudáveis que vão para as mesas das pessoas. Precisamos dedicar o nosso solo e a nossa água para isso, não para produzir sementes de soja transgênica envenenada, que deixam aqui os prejuízos do sistema de produção antiecológico e são imunes ao recolhimento de ICMS na exportação.

É fundamental ouvir o saber ecológico, do qual o RS é precursor e soube construir, aliando o respeito ao conhecimento das comunidades tradicionais com a ciência.

Por fim, ressalto que a Agapan sempre se coloca, quando chamada, como parceira de todos os poderes de Estado para apoiar nas questões relacionadas às pautas ecológicas, com seus mais de 53 anos de atuação e experiências acumuladas.

Vista aérea da cidade de Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, que está com 2/3 do seu território sob a água | Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

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